Ouçam a nossa voz |
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Ana Lúcia Leão | |
03-Abr-2007 | |
Em 1182, na Itália, nascia um menino, herdeiro de
fortuna. Mais tarde, já homem, abdicou de sua riqueza e abraçou a
pobreza. Mas não a pobreza de espírito. Gozasse de sua herança, seria
apenas mais um nome perdido na História. Porém, oito séculos depois, ele
foi escolhido a personalidade do milênio. E no mundo inteiro, hoje, no 4
de outubro, é comemorado o seu dia.
Francisco de
Assis tinha, além do despojamento, a notável capacidade de atentar para
o muitas vezes ignorado e captar as mensagens daqueles que ele chamava
de irmãos. Irmãos de todas as espécies: a dos irmãos iguais e as dos
irmãos diferentes. E os irmãos diferentes de Francisco, são igualmente
homenageados com ele nesta data.
Francisco de
Assis abriu uma picada a golpes de amor que nós, os protetores de
animais - tantas vezes menosprezados - insistimos nela prosseguir. É que
o dom da empatia, a capacidade de se colocar no lugar do outro, de
traduzir intimamente as sensações de quem nos é diverso, é um privilégio
e um fardo. Poucos recebem esse dom e, em número menor ainda, os que
aceitam assumi-lo, porque ele tem a leveza do elefante.
Durante
séculos seguimos a picada aberta por Francisco à velocidade do jabuti.
Em anos mais recentes atingimos algumas clareiras onde repousar por
breves instantes. Mas tão logo recobramos fôlego e energia, vozes –
inaudíveis para a maioria – alcançam nossos ouvidos e nos intimam a
continuar. Elas miam por respeito, elas chilreiam por liberdade, elas
mugem de pavor, ganem de dor. São vozes demais dos abatedouros pra
fazermos ressoar nas cidades; milhares de mensagens, as quais temos que
divulgar, censuradas por focinheiras nos laboratórios. São saudades
inúmeras da selva que devemos fazer ecoar para além das jaulas; é o
relincho debilitado, que nos cabe amplificar, dos que transportam carga
acima das próprias forças e debaixo do chicote.
A
ausência de empatia ensurdece o humano pra qualquer lamento que não seja
o próprio. Ele se lamuria do cansaço ao final do dia, da pensão no fim
da vida; se o jumento adoece, que entoe o zurro à distância. O cão
guarda a casa; quando velho, que vá ganir em dueto com o jumento na
desvalia. O homem abre corpos na ânsia de compreender os mecanismos da
vida, mas ignora o guincho de dor da cobaia submetida à cânula e ao
bisturi.
O ser humano convenientemente esquece a
expressão de simpatia das outras espécies: o roçar do pêlo do gato em
suas pernas, quando ele chorou o descarte do desemprego; o abanar da
cauda do seu cão, quando os amigos de juventude já se foram; o empurrão
amigo do golfinho quando se afogava. O animal irracionalmente ama aquele
que o subestima.
O utilitarismo impede que o Rei
da Natureza ouça as vozes que lhe chegam do elo mais fraco da corrente
dos desvalidos. O chimpanzé é seu bobo da corte e fonte de riso; acabada
a função circense, que chore na jaula pelo crime não cometido. O rei se
apropriou da eletricidade, escamoteou a diferença entre a noite e o
dia; dos pássaros que alardeiam o despontar do sol, ele confisca as
cores e privatiza o canto na gaiola, enquanto reivindica para si o
direito de ir e vir. Outras aves, ele amontoa na granja sob o sol
artificial de um dia perene: ali, elas envelhecem dois anos em dois
meses pra que mais depressa calem os bicos e satisfaçam o soberano na
gula de cada dia. O rei autoproclamado subverte as leis do seu reino,
gerando o golpe dos males que devastam sua criação e contaminam sua
corte. Então seus escravos conhecem o lado ainda mais impiedoso deste
rei: a megaimolação, os megasepultamentos das vítimas ainda gementes.
Nega-se a ouvir os pios e mugidos e não apreende o manifesto de revolta
da natureza.
O imediatismo e a ambição, se
ensurdecem o Rei da Natureza, também o cegam: as matas, pinta de cinza; o
mar, de negro; os rios, decora com estranhíssimos objetos. Na sua ânsia
de tudo alterar a seu bel prazer - trocando as curvas naturais pelo
caminho mais curto das retas - apaga vidas, aniquila espécies, aplaina
texturas ancestrais. E vai perdendo a memória da obra original.
O
animal racional compõe as sinfonias e faz estrondar as bombas; inventa a
vacina e envenena o ar; viaja pelo universo e enclausura os animais e
seus semelhantes em campos de concentração. Promove Francisco de Assis a
santo, mas não segue a luz que ele acendeu.Enquanto expande o
agro-negócio, restringe o curso das águas, abafa os gemidos da sede,
cala as vozes das florestas, assim arquitetando - passo a passo e sem
compaixão - a destruição da sua morada.
E quando a
rota das últimas aves for fumaça; as matas, quase pó; as águas, lama,
certamente quem se julgava o centro do universo há de clamar pelo
Supremo Protetor, aquele que Francisco, o da pequena Assisi, chamava de
Pai. Mas qual face voltará o Pai para o filho dominante? A face do
protetor ou a do juiz? Ou simplesmente não ouvirá a súplica? Talvez
enfim o homem perceba que, por sua vez indiferente, é o Pai que reflete a
imagem do filho e a este decidiu se assemelhar.
Nosso
papel é evitar que esta visão apocalíptica se consume. É lembrar aos
humanos que as palavras anima, alma, animal têm a mesma raiz. Fazê-los
perceber que a pele fina, o rude pêlo, a leve pluma, a áspera escama
envolvem a mesma matéria humilde, sujeita à dor. Que a dor nos iguala,
que dividimos a mesma casa com os que nela chegaram antes de nós. E que é
por isso que somos todos, como bem soube São Francisco de Assis, todos
irmãos.
Cabe a nós, protetores e ambientalistas,
vencer a indiferença, o utilitarismo, a soberba da nossa espécie. Não
nos enganemos: os resultados não virão como um tsunami. O homem é um
bicho político e a política é a arte do possível: que o riacho em pedra
dura nos sirva de exemplo. Precisamos ter a memória do elefante, o olhar
agudo da coruja, a manha do gato, a diligência da abelha, a fidelidade
do cão. Em certos momentos, devemos olhar do alto e silenciar como as
girafas. E muitas vezes – lembram de resultados já conseguidos? - bradar
com o poder vocal das baleias.
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